João Bosco Silva
Consultor Sênior e Sócio, Cambridge Family Enterprise Group Brasil

O mercado ainda está estarrecido com o caso Americanas, empresa centenária e uma das maiores redes varejista do país, especialmente levando-se em conta o fato de ela ser controlada pelo Grupo 3G, formado pelos admirados empresários Jorge Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira.

Pela dimensão e impacto no mercado, o caso Americanas é uma espécie de “Enron Brasileira”, como mencionou um dos advogados envolvidos no caso.

No artigo anterior, publicado aqui no LinkedIn no dia 19 desse mês e que convido você a ler, comentei o caso da Enron, que sacudiu a economia americana e acabou acarretando mudanças na legislação que rege o mercado de ações.

O caso da Americanas merece ampla discussão. Não para cravar erros e determinar responsáveis, mas para que a análise ajude a evitar novos casos e alerte sobre os cuidados a serem tomados. Uma organização tão grande e qualificada às vezes comete erros difíceis de serem explicados. Neste caso, foram graves e levaram a uma perda de valor bilionária.

Como sócio da Cambridge Family Enterprise Group, empresa com mais de 30 anos de atuação junto a empreendimentos familiares, e com a minha experiência como conselheiro e avaliador de Conselhos, volto ao assunto uma semana depois da publicação do outro artigo para analisar alguns dos equívocos cometidos por uma empresa tida, até então, como referência no mercado. São reflexões com base nas informações divulgadas, mas que vão além do noticiário factual.

 

  • O papel da comunicação

Um dos principais treinamentos que os astronautas da Nasa recebem é para evitar o pânico, porque, quando isso acontece, as pessoas cometem erros, desconsideram regras e deixam de pensar com clareza.

No espaço, a diferença entre a vida e a morte depende de controle emocional. Para um astronauta, a questão principal não é quão habilidoso pode ser, mas sua capacidade de manter o equilíbrio nas emergências. No caso Americanas, vários erros foram cometidos desde o início da comunicação, indicando pânico e descontrole na liderança.

No dia 03 de janeiro, Sergio Rial, ex-CEO do Santander e recém-empossado CEO da Americanas, fez um discurso para os funcionários desenhando um cenário róseo para a empresa. Em 12 de janeiro, nove dias depois, o mesmo Rial estava à frente de um grupo de mil investidores que foram reunidos pelo banco BTG para anunciar sua renúncia após ter encontrado inconsistências contábeis no balanço da empresa em torno de R$ 20 bilhões.

Naquele momento, as informações eram superficiais: entendeu-se que havia relação com pagamento a fornecedores e um erro na forma de contabilização, mas, aparentemente, sem impacto no caixa. Sem respostas para as tantas dúvidas que surgiram, o mercado entrou em pânico. As ações despencaram 80% em uma semana, gerando uma perda de valor de R$ 9,6 bilhões. Ficou claro que o comunicado foi feito de forma precipitada. Não havia informações suficientes para esclarecer às dúvidas que o mercado lançaria.

Minhas sugestões sobre como o comunicado poderia ter sido feito para evitar pânico? Veja abaixo:

  1. Um CEO demissionário nunca deveria ter sido o porta-voz da notícia. O comunicado deveria ser liderado pelo presidente do Conselho e/ou acionista majoritário, vindo ao mercado e informando uma denúncia anônima (naquele momento ninguém havia dito como foi descoberta a denúncia);
  2. O Conselho, ao informar o mercado, diria que, a partir da denúncia, havia iniciado uma apuração rigorosa das causas e do montante que poderia representar, bem como do impacto no balanço da empresa;
  3. O comunicado deveria ainda mencionar as ações tomadas: nomeação de um comitê independente para apurar as causas em no máximo 60 dias, por exemplo, e contratação de uma equipe full time da empresa de auditoria PwC para revisar os balanços dos últimos dez anos para identificar possíveis desvios, além de outras ações imediatas;
  4. A renúncia do CEO não deveria ser anunciada neste momento. No máximo, deveria ser informado o afastamento do CEO até a apuração e esclarecimento das causas dos desvios e valores;
  5. Os acionistas deveriam ter emitido imediatamente um comunicado ao mercado, o que só foi feito dez dias após o comunicado oficial. A demora gerou ainda mais instabilidade ao mercado;
  6. No comunicado, o Grupo 3G diz que não sabia do ocorrido e que promove práticas de transparência e ética. Mencionou ainda que a auditoria PwC emitiu cartas de circularização entre os bancos para verificar os passivos. Ao tentar colocar a “culpa” nos bancos credores, mesmo que indiretamente, despertou a reação do outro lado. O objetivo era fazer com que os acionistas acenassem com a capitalização da empresa, mas nada foi dito a respeito;
  7. O comitê nomeado começou a trabalhar apenas dez dias depois do anúncio.

Todos esses pontos evidenciam a falta de liderança neste momento do anúncio. Um CEO demissionário nunca deveria assumir este papel, até porque não havia informação suficiente naquele momento.

 

2) O papel do Conselho de Administração 

Em meu artigo anterior sobre esse caso, menciono que em crises passadas uma das características foi a atuação pouco efetiva dos Conselhos de Administração para impedir que os problemas acontecessem. Após ler meu artigo, um amigo que é membro do Conselho de uma empresa familiar me mandou uma mensagem perguntando o que o Conselho poderia ter feito nesta situação.

Neste caso, já vimos que a comunicação ao mercado foi catastrófica e caberia ao Conselho assumir a liderança dessa comunicação.  Além disso, há um aspecto muito importante que deveria ter sido verificado pelo Conselho: a remuneração dos executivos. Analisar os indicadores que determinam a remuneração variável dos executivos é atividade primordial dos Conselhos.

Baseado em dados informados à CVM (Comissão de Valores Mobiliários), os executivos da Americanas receberam R$ 700 milhões em termos nominais nos últimos dez anos, incluindo salários, bônus e pagamento em ações ou opções. Considerando que a empresa tinha 18 diretores, cada um recebeu em média R$ 3,9 milhões por ano. Quase R$ 40 milhões em uma década, o dobro do valor pago por duas outras companhias do mesmo ramo, como Renner (R$ 252,8 milhões) e Magalu (R$ 270,9 milhões). Os dados foram colhidos por Renato Chaves, ex-diretor da Previ e especialista em governança.

No segundo semestre de 2022, os executivos que tinham “opções de ações” como parte da remuneração variável venderam R$ 241,5 milhões em ações, o que gerou desconfiança no mercado. Sendo a decisão de remuneração de executivos uma função primordial do Conselho de Administração, por que a iniciativa não foi questionada? O Conselho também deve aprovar os principais objetivos dos executivos. Neste caso, será que eram só objetivos de criação de valor ou estavam ligados a risco e governança?

 

  • O papel da auditoria independente

No comunicado, o Grupo 3G reforça que a empresa contava com o apoio da PwC, uma das “big four”, na realização de auditoria independente e que ela teria circulado uma carta aos bancos credores atestando não ter encontrado informação de inconsistência com os balanços. Os bancos já responderam que estas cartas não isentam a empresa de ter seus balanços publicados, conforme as melhores práticas, e que eles não podem ser responsabilizados por isto.

É uma boa prática de governança trocar a empresa de auditoria a cada três ou quatro anos. Essa troca nem sempre traz muita novidade, já que as empresas de auditoria utilizam as mesmas práticas e procedimentos e os controles quase nunca são aperfeiçoados. O processo da auditoria não pode estar restrito a esta troca de informações com os bancos.

Uma comparação simples dos balanços da Americanas com os do Magalu e da Via Varejo mostra uma diferença na forma como as despesas financeiras são apresentadas. Os concorrentes têm maior clareza nas informações.

A Americanas, mesmo antes do fato relevante, já era a mais endividada dos três varejistas. Em setembro de 2022 já reportava uma dívida de R$ 19 bilhões, frente à R$ 7,2 bilhões do Magazine Luiza e R$ 9,3 bilhões da Via Varejo (valores sem fornecedores).

Para esses compromissos, a Americanas apresenta despesas financeiras brutas de R$ 2,2 bilhões versus R$ 2 bilhões da Magalu e R$ 2,1 bilhões da Via Varejo. Como o custo é tão parecido em números absolutos se os montantes de dívidas são tão diferentes? O auditor deveria, no mínimo, avaliar uma forma de explicitar os resultados nos balanços conforme as melhores práticas contábeis, o que, aparentemente, não foi feito.

 

Batalha judicial dos credores

No final da semana passada, a Americanas tinha conseguido a liminar para se preparar para uma recuperação judicial. Os credores, especialmente os bancos, continuam numa batalha judicial que pode envolver os controladores, sendo que algumas ações se estendem aos EUA, já que a empresa emitiu títulos no mercado americano.

A associação dos minoritários informou que vai acionar os controladores, gestores e a empresa de auditoria. O valor da dívida reconhecida pela empresa nas petições jurídicas do Rio de Janeiro chega a R$ 43 bilhões, dos quais cerca de R$ 18,8 bilhões com os bancos.

Este é um caso emblemático, que ainda vai gerar muitos desdobramentos na cadeia da indústria, varejo e na legislação que envolve as empresas de capital aberto. Volto em breve com reflexões atualizadas sobre o caso. Mas, antes disso, gostaria de continuar essa conversa por aqui conhecendo o seu ponto de vista sobre os equívocos que geraram esse efeito dominó. Conte aqui nos comentários as suas impressões.