O legado intangível do fundador. Certa vez, quando estava assumindo uma nova posição em uma empresa, alguém me disse que iria trabalhar com a família e isso “era muito complicado”, mas que em compensação a postura do fundador era inspiradora, pois ele não precisava impor comportamentos, já que ele era o próprio exemplo daquilo que desejava cultivar como cultura.
Essa foi a minha primeira experiência com empresas familiares, isso já faz aproximadamente doze anos, e de lá para cá, na segunda metade da minha carreira, já tive o privilégio de atuar em mais duas famílias empresárias e nos últimos anos, como consultora na Cambridge Family Enterprise Group, que é expert na geração de valor para essas famílias ao redor do mundo.
Tal fato me inspirou a escrever sobre o legado intangível do fundador, a figura patriarcal ou matriarcal dos empreendimentos familiares.
Especificamente, me chama a atenção o papel fundamental dos fundadores em todo este ecossistema, que vai se desenvolvendo organicamente ao longo dos anos, quase sempre com base em uma história de vida que protagonizou o empreendedorismo. As motivações são diversas e talvez muitos dos fundadores não imaginavam, quando começaram, o quão longe chegariam seus empreendimentos e igualmente, que o envolvimento de suas próximas gerações seria parte importante da trajetória e ainda outros, os executivos.
Abaixo, saiba mais sobre as principais partes do legado intangível do fundador.
3 partes importantes do legado intangível do fundador
Gostaria de destacar três partes deste legado:
- Legado emocional
- Legado comportamental
- Legado inspiracional
Legado emocional
Trata-se da relação emocional que permeia a relação dos fundadores com seus negócios e que, por sua vez, nem sempre permeia o restante da família.
É algo interessante, como o amor e comprometimento envolvidos na relação emocional de um fundador não é, em geral, automaticamente replicado aos demais membros com o mesmo grau de intensidade.
A partir disso, existem alguns impactos e conflitos como por exemplo nas tomadas de decisão. Segundo a neurociência, fisiologicamente, quase toda ação precede uma elaboração mental consciente ou inconsciente, nossas emoções (e inclusive sentimentos que partem delas) muitas vezes também não são conscientes, são oriundas dessa elaboração e quanto mais emoção envolvida menos podemos ter controle sobre estas ações, especialmente se o grau de autoconhecimento for mais baixo.
Portanto, em muitos momentos os fundadores podem tomar decisões com vieses inconscientes dado seu pleno envolvimento emocional com o contexto, preocupações emocionais com impactos gerados a partir daquela decisão, desejo de perpetuar o que iniciaram a todo custo, mesmo que envolva alguns sacrifícios – lembre-se tudo isso ocorre muitas vezes inconscientemente.
Por essa razão, acredito que quando membros familiares ou executivos são mais compreensivos e buscam entender melhor quais as preocupações do fundador antes de expressar os julgamentos, podem ter mais sucesso nas recomendações de solução, uma relação empática cabe bem, mas pode ser complexa quando existem conflitos de interesses.
Por outra perspectiva, este legado emocional é também representado pelo amor, o amor que o fundador sente por este empreendimento é tão grande que muitas vezes transcende o restante, é um legado inerente que permeia gerações, hierarquias, permeia o tempo e solidifica muitas vezes aquilo de mais importante que há no empreendimento.
Vejo como um legado acidental, que não é proposital, mas que se bem capturado a favor do empreendimento, pode ser um grande ponto de equilíbrio em especial quando for o momento de tomar importantes e difíceis decisões.
Legado comportamental
Trata-se da maneira como o fundador age, seus hábitos, a maneira de fazer as coisas, de olhar para as pessoas, os gestos, métodos que estabelece para liderar, para resolver problemas, etc. Naturalmente, o fundador acaba estabelecendo maior segurança em seu próprio modo, à medida em que as situações ocorrem e ele testa, erra, acerta, etc e com isso aumenta também seu grau de convicção a respeito deste seu modo de fazer as coisas serem como são.
Certamente as pessoas vão recordar do legado intangível do fundador e como ele chega na empresa e faz as coisas acontecerem, como se posicionou nos momentos cruciais, o que o deixa mais feliz e satisfeito e o que o deixa mais irritado. Geralmente buscamos atender as necessidades impostas, reduzir preocupações, ao interagir com os fundadores, percebo que muitos deles buscam pessoas transparentes que os digam a verdade, lhes digam os problemas reais e as soluções, isso em geral faz com que o grau de confiança na relação aumente.
Talvez eles não percebam que estão sendo observados o tempo todo, isso lhes reserva menos privacidade é claro, mas também lhes reserva admiração em outros momentos. Importante apenas a compreensão de que neste caso vale a máxima de que o comportamento sobrepõe as palavras, do ponto de vista de percepção externa e que é importante preservar e cuidar desta imagem que muitas vezes representa todo o empreendimento fortemente. Me recordo de muitos e muitos momentos ao longo deste tempo que apenas observando o comportamento de um fundador aprendi o correspondente a uma pós graduação, utilizando o mindset de aprendizagem.
Legado inspiracional
Após falarmos de emoção e comportamento, destaco a capacidade que os fundadores têm de inspirar pessoas, mobilizar organizações, etc. Talvez pelo conjunto da obra (amor que demonstra, comportamentos alinhados, etc), mas talvez por aspectos adicionais como história de vida, resiliência, carisma, trabalhos emblemáticos ou impactantes que realize e mobilize fora do empreendimento e outra infinidade de exemplos que poderiam ser citados.
O fato é que algumas pessoas se identificarão mais com este fundador. Possivelmente as que se identificam mais no ecossistema não serão impactadas apenas pela inspiração, mas também serão altamente influenciadas pela sua forma de pensar e agir, muitas vezes sem perceber. Partimos do princípio que o fundador tem experiência relevante e muitas vezes isso associado ao respeito, a inspiração torna esse fundador mais influente para algumas pessoas que se identificam e até mesmo para o mercado de forma geral que possui uma relação mais indireta.
Nas minhas experiências a maioria dos fundadores não pensou muito sobre esse legado, apenas aconteceu, alguns são mais reservados e não gostam tanto de refletir sobre o quanto são inspiracionais, isso também envolve autoexigência e não há muito tempo para estas preocupações. Por outro lado, geralmente eles enxergam muito valor em transmitir seu conhecimento, em passar um pouco do que viveram através de histórias contadas de geração em geração, seja no negócio ou dentro da família.
Estas ações de memória e legado são muito importantes para que tudo isso seja lembrado ao longo do tempo, mesmo quando essa figura inspiracional não está mais aqui fisicamente. Ao mesmo tempo, inspiram também este senso de continuidade, o quanto é bom sentir essa inspiração, ser contaminado positivamente e o quanto isso pode ser preservado nos anos seguintes do empreendimento familiar, mesmo que muitas mudanças e evoluções aconteçam.
Por fim, a minha correlação de legado intangível está atrelada a algo que pode-se ter mais concretude e ajuda muitas vezes com que o legado seja perene: o exercício de alinhamento de propósito ou de missão (razão de existir).
Toda vez que o grupo familiar se reúne para compreender e discutir seu alinhamento, sua razão de existir e envolve este fundador, possivelmente ali esteja uma baita oportunidade de capturar e valorizar todos estes aspectos, dando nome, dando sentido, dando continuidade de maneira completamente intencional.
Texto por: Melissa Cuppari
Consultora Sênior