O falecimento de Giorgio Armani, em 4 de setembro de 2025, encerrou a trajetória de um dos maiores criadores do século e reabriu o debate sobre governança corporativa e sucessão em empresas familiares e de controle fundador. Sem herdeiros diretos, Armani transformou a ausência de descendência em oportunidade para desenhar um sistema de continuidade raro no setor do luxo: fundou uma instituição destinada a ser acionista guardiã, revisou estatutos em vida, profissionalizou a gestão e vinculou a marca a compromissos de ética e sustentabilidade que transcendem sua própria figura. Este estudo examina como sua estratégia antecipatória se consolidou em um testamento corporativo de governança, quais lições emergem de sua sucessão e de que forma esse caso pode inspirar empresas familiares em outros contextos, inclusive no Brasil.

 

O legado Armani e a questão da sucessão

O nome Giorgio Armani sempre foi mais do que uma marca: tornou-se sinônimo de estilo minimalista, sobriedade estética e elegância atemporal. Desde 1975, quando fundou sua própria maison, Armani soube construir um império que extrapolou a moda e se projetou em setores como hotelaria, decoração, perfumes e gastronomia.

Com presença em mais de 120 países e faturamento de bilhões de euros, o grupo se consolidou como um dos pilares do Made in Italy — não apenas pela excelência de seus produtos, mas também pelo modelo de independência que o diferenciou em uma indústria cada vez mais dominada por conglomerados globais.

O desafio que se impôs, porém, foi o da sucessão. Armani não deixou filhos nem herdeiros diretos. Ao contrário de outras casas de luxo que se dividiram em disputas familiares ou acabaram incorporadas por gigantes como LVMH e Kering, o estilista decidiu transformar essa ausência em oportunidade de institucionalização.

Assim, desde 2016, com a criação da Fundação Giorgio Armani, começou a traçar as linhas de um projeto sucessório que não dependesse de laços de sangue, mas da cristalização de princípios em estruturas jurídicas, estatutárias e de governança.

 

Fundação, estatutos e governança como testamento corporativo

A fundação, sediada em Milão, foi concebida não apenas como veículo filantrópico, mas como guardiã da empresa. Recebeu poderes para deter ações, exercer votos e impor limites a eventuais tentativas de aquisição. Ao mesmo tempo, tornou-se depositária da filosofia Armani, garantindo que a identidade da marca permanecesse inalterada mesmo após a ausência do fundador.

Esse movimento foi acompanhado da revisão estatutária realizada em 2023, dois anos antes de sua morte. O “estatuto pós-Armani” traduziu a filosofia do fundador em normas permanentes. Entre as cláusulas mais relevantes destacam-se a criação de classes de ações com votos diferenciados, garantindo à fundação poder decisório desproporcional, e a imposição de uma moratória de cinco anos para qualquer abertura de capital. Também foram inseridas barreiras rigorosas contra fusões, incorporações e alienações relevantes sem a anuência expressa da fundação.

Complementando esses dispositivos, Armani deixou um arcabouço robusto de governança: o Modello 231 (mapa de riscos, protocolos, organismo de vigilância), um novo Código de Ética aprovado em 2024 (integridade, direitos humanos, concorrência leal e sustentabilidade) e a Política de Whistleblowing de 2023 (canais seguros, anonimato e sanções contra retaliação). Esses elementos formam uma herança institucional: a sucessão foi pensada como processo jurídico e organizacional, não como improviso.

 

ESG e profissionalização da sucessão

O plano de sucessão se completou com a integração da sustentabilidade e da profissionalização da gestão. O Plano de Sustentabilidade 2019–2030, estruturado em Pessoas, Planeta e Prosperidade, foi incorporado à governança.

Os resultados reportados até 2023 apontam para a redução de 57% das emissões de escopos 1 e 2, 76% de energia renovável e 62% da força de trabalho composta por mulheres (metade em cargos de liderança), reforçando o caráter de “eco-luxo” e vinculando os sucessores a metas de longo prazo.

No campo humano, Armani construiu uma sucessão híbrida. Familiares próximos, como Silvana e Roberta Armani, preservam o vínculo afetivo; colaboradores históricos, como Leo Dell’Orco, garantem continuidade criativa; executivos externos, como Giuseppe Marsocci e Daniele Ballestrazzi, asseguram disciplina financeira e administrativa; e a fundação atua como árbitro institucional. Essa estrutura colegiada impede disputas, reduz riscos de captura por interesses particulares e transmite confiança ao mercado.

 

Lições internacionais e reflexões ao Brasil

O modelo Armani dialoga com outras experiências do setor de luxo. Chanel preserva sua independência via fundação em Liechtenstein; Hermès se protegeu de aquisições hostis criando a holding H51; Gucci perdeu autonomia por falta de governança e acabou absorvida pela Kering; a LVMH consolidou dezenas de marcas sob capital aberto e lógica de conglomerado. Armani reuniu virtudes desses modelos sem repetir suas fragilidades, optando pela independência institucionalizada.

No Brasil, fundações não podem atuar como acionistas guardiãs, segundo o Código Civil. O equivalente funcional é a holding patrimonial, combinada a acordos de acionistas, protocolos familiares e, quando aplicável, fundos exclusivos. Exemplos nacionais — Itaú, Gerdau, Votorantim, Ermírio de Moraes — mostram como esses instrumentos podem garantir continuidade. A lição central é que sucessão precisa ser tratada como estratégia, não como herança automática.

A sucessão de Giorgio Armani é exemplo de planejamento antecipatório e de institucionalização de valores. Ao fundar uma instituição guardiã, revisar estatutos, integrar governança e ESG e estruturar uma sucessão colegiada, Armani transformou sua ausência em continuidade. A mensagem é clara: sucessão não é evento, é processo, e precisa ser conduzida em vida.

Na Cambridge Family Enterprise Group (CFEG), apoiamos famílias empresárias a transformar princípios em estruturas de governança que atravessam gerações. Nosso trabalho integra múltiplas dimensões ligadas às demandas de governança corporativa, familiar e de propriedade, bem como a preparação para a sucessão, sempre considerando a família empresária como um todo. Tal como no caso Armani, acreditamos que a continuidade depende de antecipação, institucionalização e equilíbrio entre família, propriedade e gestão.