Há exatamente um ano veio à tona a crise da Americanas, o caso mais polêmico envolvendo uma empresa brasileira e seus acionistas controladores, o trio Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, considerados os mais bem sucedidos empresários brasileiros. Já escrevi, na época, alguns artigos comentando sobre os erros cometidos, tanto na gestão da crise quanto no processo de comunicação e na governança.
Depois de um ano, alguns fatos foram esclarecidos e a empresa precisou lidar com as consequências geradas pela falta de controle e gestão. A situação deixou diversos aprendizados sobre gestão e governança e é principalmente sobre isso que quero refletir aqui.
A cronologia do caso
Apenas para recordar os eventos principais que ocorreram ao longo do ano de 2023:
- 11/janeiro: O ex-CEO Sergio Rial, que estava no cargo havia dez dias, vem a público informar um rombo de R$ 20 bilhões que ele chamou de “inconsistências contábeis” em decorrência de operações de financiamento com fornecedores. Ao mesmo tempo, apresenta sua renúncia ao cargo.
- 19/janeiro: A Americanas pede recuperação judicial e informa dívidas de R$ 43 bilhões.
- 27/janeiro: A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) abre inquérito administrativo para investigar o caso.
- 17 /maio: A Câmara dos Deputados abre uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o rombo da empresa.
- 13/junho: Na CPI, o novo CEO da empresa, Leonardo Coelho, descarta existência de inconsistências contábeis e fala em fraudes ocorridas na diretoria anterior.
- 16/novembro: A empresa divulga o balanço de 2022 e republica as demonstrações de 2021 com correções. Os dados revisados de 2021 apontam que a fraude contábil chegou a R$ 25,2 bilhões e o prejuízo atingiu R$ 12,9 bilhões, enquanto o patrimônio líquido negativo atingiu R$ 26,7 bilhões.
- 19/dezembro: Os credores aprovam o plano de recuperação apresentado pela empresa.
Algumas consequências da crise
O acordo com os bancos credores prevê um aporte de R$ 12 bilhões pelos acionistas de referência e a capitalização de igual valor pelos bancos das dívidas existentes (totalizando um aporte de R$ 24 bilhões). Os bancos e os acionistas passam a deter 98% do capital da empresa.
Ao longo do ano, a empresa conseguiu sobreviver fechando 126 lojas e demitindo 5 mil funcionários. Seu valor de mercado caiu 92,8%, de R$ 10,3 bilhões em agosto de 2020, antes da crise, para R$ 776 milhões no final de 2023. A empresa chegou a valer R$ 111 bilhões na bolsa de valores.
A participação de mercado nas vendas online, que representavam 13%, despencou para 4,3% no ano passado. A queda nas vendas físicas foi menor, o que manteve a empresa funcionando.
As lições aprendidas
O caso Americanas expõe uma série de falhas de gestão e governança, mas que podem servir como aprendizado para empresários e conselheiros de empresas. Destaco aqui os três pontos que considero mais importantes:
- Incentivos têm de ser monitorados e avaliadosMesmo sem haver declarações oficiais da gestão, ficou evidente a falta de controle induzida por um sistema agressivo de remuneração de diretores ligado à valorização da empresa. Este sistema falho está na base das fraudes, agora reconhecidas.Quando os incentivos são absurdos, levam a um comportamento também absurdo. Benjamin Franklin escreveu: “Se você quiser persuadir alguém, apele a seus interesses, não à sua razão.”
- Governança evita destruição de valor e reputaçãoEste caso emblemático mostra a grande perda de valor da empresa em cerca de um ano. Apesar de ter um sistema de governança, ele não funcionou, os controles não foram eficientes, as auditorias internas e externas não perceberam a fraude. Estas são questões que precisam ser respondidas e certamente o atual Conselho de Administração deve estar buscando as respostas.Os acionistas controladores não tiveram nenhum benefício ao longo destas décadas que controlam a empresa, somente os executivos se beneficiaram dos resultados criados artificialmente.As indicações, segundo entrevista do novo CEO da empresa, é de que os resultados fictícios existem há pelo menos dez anos.Relembro mais uma vez o famoso caso da Enron, nos Estados Unidos, que teve sua reputação manchada, assim como seus acionistas e a sua marca. A gigante do setor de energia foi alvo de denúncias envolvendo fraudes contábeis e fiscais e, após o escândalo, foi à falência e desapareceu.Warren Buffet afirma que para construir uma reputação são necessários vinte anos e para destruí-la, apenas cinco minutos. Possivelmente os novos controladores vão rever o sistema de governança e corrigir as falhas detectadas.
- Acionista controlador precisa estar atento à evolução dos resultadosAlguém que conhece o negócio precisa estar atento aos resultados, fazendo benchmarking com concorrentes, avaliando tendências e verificando se os números contábeis traduzem a realidade.Se o acionista conhece os fundamentos do negócio ele tem a percepção se os resultados gerados fazem sentido.O consultor Carl Richards afirma que “risco é o que sobra depois que você acredita ter pensado em tudo”. Faltou esta perspicácia por parte do Conselho. Uma análise simples de comparação com os concorrentes mostra que a Americanas tinha um endividamento mais alto e custos financeiros menores, o que não faz sentido.A empresa mostrou ter um sistema burocrático de governança, mas não um sistema eficiente de controle dos riscos.
O futuro
Na última semana, o novo CEO da Americanas deu várias entrevistas à mídia e indicou quais são as prioridades agora. Após a capitalização da empresa, o foco será nas lojas físicas e na geração de caixa para em seguida pensar em crescimento. Em paralelo, um comitê independente analisa as fraudes e problemas de controles.
O tom é de otimismo, o que certamente garante a permanência de inúmeros empregos e a manutenção de uma empresa quase centenária. Quero aqui reconhecer o desprendimento dos acionistas controladores em salvar a empresa por meio de um aporte de capital significativo.
Certamente haverá novidades à medida em que avançam as auditorias e as investigações da CVM e do Ministério Público. Esperamos que possam sair decisões e punições que melhorem o sistema de controle das empresas no Brasil, pois corremos o risco de afastar os investidores locais e estrangeiros por falta de credibilidade.
Uma das consequências da crise da Americanas foi a restrição de crédito por parte dos bancos ao varejo, o que afetou muitas empresas e empregos. Poucos foram os beneficiados e é necessária uma punição exemplar.
JOÃO BOSCO SILVA
Sócio – Cambridge Family Enterprise Group
Fundador da Bridge Business Advisors, que em 2017 se fundiu a Cambridge Family Enterprise Group para atender famílias brasileiras. Foi CEO da Votorantim Metais, em que liderou o processo de internacionalização e crescimento da empresa e participou do processo de transição da segunda para a terceira geração. Anteriormente, foi CEO da Alcan Alumínio do Brasil e trabalhou em Montreal como Diretor de melhoria de desempenho para empresas da Alcan. Fez seu MBA no IMD, na suíça, e formou-se em engenharia metalúrgica pela escola de mineração de Ouro Preto.