João Bosco Silva
Consultor Sênior e Sócio, Cambridge Family Enterprise Group Brasil
Na semana passada o mercado foi surpreendido com um comunicado do novo CEO da Americanas, Sérgio Rial, que anunciou sua renúncia após divulgar fato relevante informando que foram encontradas “inconsistências” contábeis estimadas em R$ 20 bilhões na conta de fornecedores de exercícios anteriores, incluindo 2022. A imensa repercussão do caso suscitou questionamentos entre empresários e investidores sobre as possíveis falhas de governança que não evitaram um problema dessa magnitude.
Rial estava no cargo havia somente dez dias e renunciou junto com o novo CFO, André Covre. A chegada da dupla havia impulsionado a ação da empresa em 32% neste início de ano. A Americanas tem como acionistas de referência os sócios da 3G Capital, Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, que até 2022 eram os controladores da empresa e atualmente possuem em conjunto cerca de 30% do capital da companhia. Os três são considerados os empresários mais bem sucedidos no mercado e são uma referência em gestão e recuperação de empresas.
A holding brasileira do ramo de varejo foi fundada em 1929 e o trio de empresários adquiriu seu controle em 1982, quando eram acionistas do antigo Banco Garantia. Estamos falando de uma companhia que é uma das líderes do setor varejista, com faturamento de R$ 23 bi em 2021, lucro líquido de R$ 544 milhões e que está entre as 50 maiores empresas brasileiras, segundo dados do Valor 1000.
Para entender o caso:
- Após a divulgação do fato relevante, o Conselho de Administração resolveu criar um comitê independente para apurar as circunstâncias que ocasionaram as inconsistências contábeis.
- As ações da empresa caíram 77%, produzindo uma perda de valor de R$ 8,3 bilhões. O patrimônio líquido da empresa era de R$ 14 bilhões, inferior, portanto, à “inconsistência contábil” de R$ 20 bilhões.
- O mercado passou a questionar o sistema de governança e de controles da empresa, inclusive os auditores independentes. O auditor PwC aprovou o balanço de 2021 e os dos três trimestres seguintes sem nenhuma ressalva, como se tudo estivesse normal. No entanto, o rombo é o dobro do valor da empresa antes do fato relevante.
- No final da semana passada, a Americanas conseguiu na Justiça uma medida chamada de “tutela de urgência”, que dá a empresa um prazo de 30 dias para se preparar para uma possível recuperação judicial. Esta medida levou a uma batalha com os bancos credores. No pedido, a empresa reconheceu ter uma dívida de R$ 40 bilhões, sendo cerca de R$ 18,8 bi com bancos.
- As perdas dos diversos fundos de investimento e gestores individuais foram significativas, além de colocar em risco o emprego de cerca de 40 mil pessoas.
- No encerrar da semana, existiam indicações de que a empresa deve pedir recuperação judicial. Os acionistas minoritários estão acionando o Ministério Público para processar judicialmente os executivos e a empresa de auditoria.
A importância de uma boa gestão da governança
Muitos empresários nos perguntam por que investir em governança e aqui temos um bom exemplo de como a falta de uma governança bem estruturada gerou uma perda valor de R$ 8,3 bilhões. Investir em governança não apenas cria valor, mas também impede a destruição de valor.
A Americanas tinha um Conselho de Administração em que havia quatro representantes dos sócios do grupo de referência da 3G, um Conselho Fiscal, um auditor das “Big Four”, estava registrada no Novo Mercado e era integrante do ISE (Índice de Sustentabilidade Empresarial).
No papel, estava tudo bonitinho. Mas por que não funcionou?
Não é a primeira vez que encaramos uma situação como esta. No final dos anos 90 e início de 2000, aconteceram vários casos bastante conhecidos e amplamente divulgados de empresas que, após um crescimento acelerado, acabaram falindo e desapareceram. Relembro aqui alguns exemplos.
A Enron, do setor de energia, cresceu 750% de 1996 a 2000 e era considerada em muitos aspectos uma empresa de excelência nos Estados Unidos. A empresa faliu após os escândalos de manipulação de resultados e a auditoria da época, Arthur Andersen, também desapareceu. Executivos da empresa foram julgados e condenados.
Outro caso marcante foi o da gigante de telecomunicações WorldCom, que registrou crescimento de 660% entre 1994 e 1999, mas teve os resultados manipulados e faliu após a divulgação da fraude. Entre as companhias brasileiras, tivemos os exemplos da Sadia (crescimento de 48% entre 2006 e 2008) e do Banco Panamericano (crescimento de 116% de 2004 a 2007), ambas absorvidas por outras empresas.
Quais as razões de a governança não funcionar?
Muitas foram as análises e artigos sobre estes casos clássicos do passado e todos têm em comum alguns pontos relevantes que merecem ser analisados no caso da Americanas:
- Remuneração variável dos executivos
Nos casos citados acima, os executivos eram remunerados pela valorização das ações na bolsa, dentro do modelo chamado de “stock option”. O grupo 3G é reconhecido por ter um modelo de remuneração variável muito agressivo, baseado na valorização da empresa no mercado. Que outros indicadores eram utilizados para avaliar a performance dos executivos? Este é o principal motivador das decisões tomadas.
No site da Americanas, um dos valores da empresa é “ser obcecado por resultados”. “Obcecado”, segundo o dicionário Michaelis da Língua Portuguesa, significa ser “cego, aquele que está com a razão sem discernimentos, que insiste no erro, que se apega a uma ideia fixa de maneira irracional”. Esta obsessão por resultados pode significar passar por cima das regras de governança, por exemplo.
Aliás, um fato interessante é que entre agosto e outubro do ano passado executivos da Americanas venderam R$ 241,5 milhões em ações da empresa. Após a divulgação dos resultados, como já foi dito, as ações caíram 77% em valor.
- CEO muito poderoso
Nos casos mencionados anteriormente, os CEOs eram extremamente poderosos, lideravam as empresas de forma centralizadora, não tendo como hábito compartilhar decisões. O ex-CEO da Americanas, Miguel Gutierrez, conforme reportado pela imprensa, permaneceu no cargo por 20 anos e na empresa por mais de 30 anos. Ele foi o responsável pelo grande crescimento nos últimos anos. Durante sua gestão, a empresa passou de 100 para mais de 3.500 lojas e também foi pioneira no desenvolvimento digital no varejo
As boas práticas de governança indicam que o tempo médio de permanência de um CEO está entre 5 e 7 anos. Em um mundo em grande transformação, as empresas têm de se adaptar e buscar um líder com o perfil adequado para enfrentar as mudanças e desafios do mercado, olhando para o futuro. Um CEO com permanência muito longa tende a perder eficácia e se ater a decisões que tomou no passado.
- Conselho de Administração pouco atuante
Nos exemplos relatados, os Conselhos foram pouco atuantes e não aplicaram as regras e rigores da governança. No caso da Americanas, se verificarmos a composição do Conselho, existem três conselheiros independentes e quatro representantes dos acionistas de referência. Destes, Beto Sicupira e Paulo Alberto Lemann, filho de Jorge Paulo Lemann, são acionistas da 3G. Ou seja, a maioria dos membros do Conselho certamente vota com os controladores.
Interessante analisar o desequilíbrio: o chamado grupo de referência tem 30% da empresa, mas 57% de participação no Conselho. Nenhuma decisão certamente consegue ser aprovada sem o endosso deles. Será que este Conselho realmente questiona ou questionou as boas práticas de governança?
Para concluir, este caso demonstra como a governança é fundamental para criar valor e como pode destruir rapidamente o valor e a reputação de empresas. Mostra também que manter regras de governança “de fachada”, se atendo apenas à burocracia dos procedimentos, não significa proteção à empresa. Precisamos ter conselheiros atuantes e sistemas que funcionem.
Nos Estados Unidos, após o escândalo da Enron, foi aprovada pelo Congresso americano em 2022 a Lei Sarbanes-Oxley para proteger os investidores das possíveis fraudes financeiras. O nome vem da iniciativa de dois parlamentares, o senador Paul Sarbanes (Democrata de Maryland) e o deputado Michael Oxley (Republicano de Ohio). Com a legislação, os gestores das empresas passaram a ser criminalmente responsáveis pela qualidade e transparência das informações.
Pelo menos por lá, a partir desta lei, melhorou muito a qualidade das informações e as fraudes praticamente desapareceram. Vamos acompanhar como nossos órgãos de controle do mercado, como a CVM (Comissão de Valores Mobiliários), irão se mobilizar na análise deste caso das Americanas, que ainda vai gerar muitos desdobramentos. Estamos falando de uma situação que abalou a credibilidade do mercado acionário e das empresas de auditoria. Como os investidores minoritários , os fundos de investimento, fornecedores vão investir suas economias quando o sistema de supervisão e controle não funcionam?
Acompanhamos muitos casos como este na Cambridge Family Enterprise Group, em que os minoritários acabam sendo os principais prejudicados. Talvez seja hora de termos uma legislação mais rígida para punir gestores que falseiam resultados para criar valorização fictícia nas empresas.